
levou-me a uma das várias que vivi na primeira pessoa!
Morava perto do hospital militar de Luanda. Quando os helicópteros sobrevoam a minha casa, sabíamos que vinham mais feridos e as duas macas de fora, com mortos.
Todos os sábados visitava com o meu grupo num total de 17/18 jovens, aquele "arsenal" de "carne para canhão" de uma guerra estúpida (como se alguma fosse o contrário).
Durante a semana andávamos no peditório - revistas, tabaco, doces, bolachas e lá iamos fazer o que achavamos "por bem". Na entrada falávamos com o chefe das enfermarias e cada um ia para uma.
Para aqueles jovens militares éramos a luz, a palavra amiga, o saber a pouco, sei lá, mas uma das enfermarias, só eu e mais dois amigos é que conseguíamos ir. Porquê? porque eram os que mais hora menos hora morreriam.
Certo dia, ainda cá fora ouvia uns gritos "Cátia, Cátia" e pela minha cara o enfermeiro disse com aquele ar tão doce: Fatyly mais uns quantos amiga, mas o que ouves não sossega por nada deste mundo, nem com a quantidade de sedativos que o médico já lhe deu. Não sei quem seja a Cátia, mas há horas que está naquilo.
Entrei e deparei-me com uma autêntica múmia, todo envolto em ligaduras e só se via uma mão que bracejava, os olhos semi-abertos e a boca de onde se ouvia o chamamento..."Cátia, Cátia". Sentei-me ao lado dele, dei-lhe a mão e disse: estou aqui. Ainda hoje sinto o aperto daquela mão enorme. Vá sossega, não estás só e fiz-lhe imensas festas no cabelo, beijei-o na mão e na face. Começou a sossegar, a sossegar e adormeceu. Só o deixei quando a mão dele largou a minha, onde ficaram três nódoas negras em forma de dedos e que o enfermeiro logo tratou!
Podem imaginar uma situação destas? não, mas com 17 anos tinhamos o factor humano em alta, mas tão revoltados com aquela maldita guerra...! Viamos o trabalho de médicos e enfermeiros, brancos ao lado de pretos...todos unidos numa única missão: salvar vidas!
No dia seguinte antes de ir para o trabalho, passei por lá e aquele jovem desconhecido tinha morrido às 5 da manhã. O enfermeiro ainda quis mostrar-me a foto, mas eu disse não...porque para mim a maioria eram jovens "sem rosto" por terem sido arrancados das suas aldeias e cidades, das suas famílias para matas que não faziam a menor ideia do que, e como eram.
Sucedeu-me com outro, mas menos violento de aguentar porque estava em coma...o tal soldado desconhecido que foi igualmente tratado com tudo o que era preciso e afinal era o que se apelidava de "turra", mas longe das mentes maquiavélicas dos "senhores da guerra".
São estas histórias reais que os "senhores da guerra colonial" jamais tiveram a coragem de contar, excepto um "grande autor e senhor" que na sua profissão de médico, socorria, tratava, operava quem lhe surgisse de ambas as barricadas.
Também nunca ninguém falou ou escreveu, como enganaram tantas famílias da metrópole com a vinda de caixões com todas as honras militares...a honra militar salazarista para com um jovem cujo corpo foi pulverizado mas... virou "pedras". Já nem falo dos mutilados e os que sofrem hoje do stress-traumatico de guerra, doença que se manifesta muitos anos depois. Não tinha tempo para visitar outros hospitais com feridos civis pela guerra que se misturavam com outros com várias patologias. As crianças? meu Deus...
Hoje, sempre que vou dar sangue ou visitar alguém...dou uma volta e chego-me a quem está completamente só e de olhos postos na porta a ver se entra alguém. Tenhos histórias tão cabeludas que daria para um livro, daí não criticar "pais que não visitam filhos ou familiares e filhos que não visitam os pais ou familiares"!
Falamos mal de tudo e de todos...mas pelo menos vivemos em paz e se tivesse que passar tudo de novo não sei se aguentaria!
Obrigado Obervador por me teres feito relembrar este lado agri-doce da minha vida!