terça-feira, 19 de abril de 2016

Noutros lugares de Jorge de Sena dito por Diogo Infante!



Noutros lugares

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que aos mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam para sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
e que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,

se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.

Jorge de Sena

12 comentários:

  1. Tal e qual. Como estou aqui e como te vou roubar sabes para onde:)
    Beijocas

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    1. Já o tinha guardo há anos e resolvi publicar. Dura realidade amiga que poucos compreendem sobretudo os mais novos e a declamação do Diogo está genial. Podes levar sim:))

      Beijocas e obrigado

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  2. Um grande escritor dito por um grande actor.
    Do melhor!
    Beijos

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  3. Quero deixar em modo introdução que, Diogo Infante é um dos homens mais charmosos que existe neste Portugal à beira-mar sentado. Diogo Infante a dizer poesia é a cereja no topo do bolo. Olhe, Fatyly, gostei muito deste bocadinho. Sou bem capaz de lhe roubar este vídeo para o meu arquivo digital, só naquela de o ouvir sempre que a alma pedir poesia e aconchego :)

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    1. Lidei com ele durante uns anos e fora de palcos e além de charmoso como dizes, é afável, humilde e um bom conversador num trato genial. Tenho saudades desses tempos e quando o encontro é uma festa:)

      Sim, declamada muitíssimo bem qualquer poesia que nos enche a alma e nos aconchega, como este video que guardo há muito!

      Beijos e um bom sábado

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    2. Lidei com ele durante uns anos e fora de palcos e além de charmoso como dizes, é afável, humilde e um bom conversador num trato genial. Tenho saudades desses tempos e quando o encontro é uma festa:)

      Sim, declamada muitíssimo bem qualquer poesia que nos enche a alma e nos aconchega, como este video que guardo há muito!

      Beijos e um bom sábado

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  4. Poema intenso e profundo, que parece ganhar ainda maior dimensão na excelente voz de Diogo Infante. Muito bom!

    Um beijinho :)

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