sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A HISTÓRIA QUE A MINHA MÃE CONTA SEMPRE QUE FAÇO ANOS

 

26 de Janeiro de 1951

Decorria o mês de Janeiro, último da chegada de mais um rebento. O calor era imenso, como era imensa a sua barriga que mal podia andar. Depois das lides habituais e com a sua nova companhia, descansava numa cadeira à sombra da mangueira. No colo um cesto cheio de maçãs que habitualmente comia durante a sua gestação. 
Passou um avião e de olhos postos no céu, pensava se o seu marido chegaria a tempo de estar presente na hora em que o seu segundo filho ou filha cumprimentaria o mundo. A sua lavadeira, conhecedora do assunto, abeirando-se e pondo a mão curtida sobre a sua barriga, numa carícia disse-lhe: tá quase e acredite que vão ser dois. Tu não me digas isso, porque assustada já estou eu!!!! Tenha calma menina, porque os deuses vão estar do seu lado e eu, mais a MR e a Dª. Carmo parteira vamos ajudar a senhora. 
Era linda, muito linda e duas lágrimas caíram dos seus não menos lindos olhos verdes acastanhados. Pegando na sua filha com 2 anos, entrou em casa! Sentou-se de novo na máquina de costura e voltou a pegar na agulha e linha, um dos seus ganha pão!
Os dias foram decorrendo normalmente preenchidos por muito trabalho, longas caminhadas na entrega das suas costuras e tratando da sua filha.
Estafada deitou-se e adormeceu, mas por diversas vezes acordou num incómodo constante.
Na madrugada do dia 26 de Janeiro de 1951, sexta-feira, pelas dores que sentia, sabia que tinha chegado a hora.
Calmamente abriu a persiana e o sol já nascia no horizonte no seu aviso africano de que seria mais um dia de grande calor! Sem hora certa, também o seu marido chegaria de viagem.
Sentou-se na cama a sentir a brisa matinal e o pontapear cada vez mais forte do seu bebé.
Olhou para a mesinha de cabeceira. Pegou nos dois bilhetes para a grande estreia do toureiro Diamantino Viseu e aceitou com resignação o facto de que não poder ir. A sua filha ainda dormia com a MR.
Foi ao quarto da lavadeira e mediante os sinais mais que visíveis, pediu-lhe que fosse chamar a sua grande amiga TZ e a DªCarmo parteira, é para já minha senhora e atando melhor o lenço na cabeça (gesto que fazia quando ficava nervosa) foi num pé e veio no outro, no seu sonoro e gestual “ai ué mamã, ai uéee”.
Preparou o quarto com a MR, pondo tudo a jeito e entrou em trabalho de parto às 7h e 30, rodeada pelas referidas amigas eternas.
Depois de uma longa espera e muito sofrimento, pelas 14h e 30, nasceu uma menina e outro, que pelo massa morta e disforme num aglomerado de carne, cabelos e ossos não deu para perceber o sexo, mas eram gémeos. De imediato foi chamado um médico enquanto tratavam da “gordinha” com quase 5kg que depois de lavadinha e perfumada, num chambrinho feito pela jovem mãe, adormeceu ao seu peito. O médico confirmou que de facto eram gémeos falsos, mas que tinha havido um bloqueio no cordão umbilical o que originou o “seu não progresso”, mas que quer a mãe nos seus 20 anos, quer a “gordinha” estavam de perfeita saúde.
Ah “mia siôha” como é linda e "sabi"? vai ser uma lutadora então não viu “os bagunça onde ela "virveu" nos nove luas”? Tadinha e pondo um ar sério no seu rosto preto, tocando a “gordinha” com aquelas mãos curtidas, balbuciou no seu dialecto...as preces aos seus deuses, terminando com um sorriso tão lindo e meigo. Agora “discansii tá”?
Repousava quando o seu marido chegou pelas 16 horas, indo direitinho ao quarto, mas com a frustração estampada no rosto (outra menina?), saudou-as efusivamente e deu um beijo às duas. Com mil pedidos de desculpas tão esfarrapadas mas acatadas com um sorriso, lá foi ele com uns amigos a caminho da dita tourada, todo bonito e penteado com brilhantina, porque de facto era um homem com muito charme.
A bela jovem de olhos castanhos esverdeados ficou com as suas meninas e as visitas constantes de toda a vizinhança.
Anoitecia e pelas 18h,30 o seu marido regressou! Trazia na mão um enorme ramo de malmequeres! Abeirou-se dela, beijou-a e disse: ofereço-te com carinho o que encontrei em cima do carro! 
Pegou de novo na “gordinha” que dormia longe, bem longe da luta interior de uma jovem, que mal ele saiu do quarto, mandou a TZ pôr o ramo no caixote do lixo.
Ele ao ver passar o ramo pela sala onde se encontrava a jantar...nada disse, porque sabia que não tinha procedido corretamente.
Uma ano depois em Março de 1952 nasceu o primeiro rapaz e assim foi por mais duas vezes, num total de cinco filhos.
Entre altos e baixos, foram felizes, muito felizes porque de facto o amor entre os dois era imenso, como foi imensa a luta árdua que tiveram para criar a sua prol.
💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕💕
A “gordinha” SOU EU, que anteontem ao fazer 71 anos conto-vos uma história sucinta, mas real e simples, que ouvi vezes sem conta e que consta num livro branco que ela escreveu sobre a sua vida e que deu uma cópia a cada filho
Que rica peça que saí ... hem??!!!!

FIM

18 comentários:

  1. Uma narrativa deslumbrante que me deliciou ler. 71 anos uma idade lindíssima. Muitos parabéns.
    .
    Sexta-feira feliz … Sorrisos poéticos.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  2. Muito bonita a história do teu nascimento contada pela senhora tua mãe.
    Pelos vistos a filha saíu à mãe no gosto pela narrativa. :)
    Parabéns uma vez mais e quando voltares ao Lar dá um beijinho meu a essa linda jovem de olhos castanhos esverdeados.
    Grande Mulher que ainda hoje mostra a sua personalidade, não se vergando às vontades alheias ... :))

    Outro grande para a gordinha que agora adelgaçou. :))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ela escreveu dois livros mas não editados. Um é desde que ela nasceu e as voltas que a vida lhe deu até ao seu casamento. O outro é a partir do nascimento dos filhos, netos e bisnetos. Ainda estava na sua casa.
      Janita ela ainda hoje escreve todos os dias fazendo o resumo do dia. Em Dezembro ofereço-lhe sempre uma agenda e já lá tem a 6ª porque em Fevereiro fará 6 anos que está no Lar.
      Darei sim e por vezes imprimo coisas daqui e levo-lhe e ela fica contente. Depois do tratamento à vista voltou a ler, escrever e crochetar:))))
      Beijocas e obrigada

      Eliminar
  3. Muitos parabéns, embora atrasados, Fatyly.
    Que maravilhosa descrição do seu nascimento, que ficou bem registado pela sua mãe.
    5 kgs para uma menina, é obra! Por isso tem essa força de vontade e coração enorme, Fatyly.
    Imagino a dificuldade de criar tantos filhos, mas também a alegria de ter uma família grande, eu como filha única "invejo-a" um pouco.

    Conte muitos anos com saúde e alegria de viver, é sinceramente o que lhe desejo.

    Um grande beijinho com admiração!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Éramos cinco mas o meu irmão João (4º filho) morreu. Além de nós o meu pai também deu guarida ao filho da nossa lavadeira a Lemba e depois a mais outro amigo deste. Era muita alegria sim mas ter ou não ter uma família grande ex a questão, porque agora somos 4 filhos e três não se falam, mas todos falam comigo e já tem 10 netos e 14 bisnetos. Quem a visita? quando Peço ajuda para irem com ela a uma consulta, pois é isso mesmo e sobra sempre para mim e para a minha filha que mora ainda mais perto do Lar.
      Tenho uma irmã igualmente perto mas sempre muito ocupada e não vale a pena criar problemas. Peço a todos que não lhe contem "desgraças familiares" mas fazem o contrário como se a minha mãe estivesse ainda na casa dela. Já não basta ver a porcaria do canal CM e ainda a preocupam e sou eu o saco de pancada. Estou sempre a par dos assuntos de saúde dos meus irmãos e das minhas filhas e netos mas da minha parte só sabe depois de tudo estar bem.
      Gerir esta pandilha não é fácil mas enfim já me habituei:)))
      Beijocas e obrigada

      Eliminar
    2. O "problema" das famílias grandes é mesmo esse, encostarem-se uns aos outros, e claro sobra sempre para o que tem mais sensibilidade e bom coração.
      Tanto eu como o meu marido somos filhos únicos, não há problemas com heranças e os nossos pais só contavam connosco, felizmente estivemos sempre presentes.
      Ainda agora, tenho a única sobrevivente, a minha sogra com 92 anos a viver desde Dezembro connosco.
      Gerir pais e filhos nesta pandemia não está mesmo a ser nada fácil, mas cá vamos resistindo e lutando, tem que ser!
      Grande beijinho e obrigada.

      Eliminar
    3. Não há heranças e eu pedia muito a Deus que ela vendesse a casa em vida e em 2014 e 2015 procurei uma casinha para as duas, mas em cima de ir ver, desistia.
      Com a morte dos meus tios paternos e maternos houve touradas com os filhos sobre as heranças que não te digo nada. O meu pai ainda era vivo e resolveu tudo.
      Não sei da maior parte dos meus primos que se desligaram completamente, dois telefonam à minha mãe e um deles já a foi visitar ao lar. De resto não procuro.
      Também no meu trabalho vi histórias nos processos de heranças que nunca pensei na vida.
      Beijinhos e uma boa noite

      Eliminar
  4. Passando, relendo, elogiando, e deixando votos de um Feliz fim-de-semana.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  5. Bom dia
    Uma historia verdadeira que vai ser contada muitas mais vezes com certeza pois estas ficam mesmo para a posteridade.
    Muitas felicidades .

    JR

    ResponderEliminar
  6. Histórias para continuar a recordar.
    Saúde para todos vós, Amiga.
    Beijocas

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É verdade e também desejo que estejas bem assim como os teus.
      Beijocas e obrigado

      Eliminar
  7. Muito ler e reviver também um passado. Acho que agora não não ficam estas histórias. A vida é muito stressante. Adoro ouvir a histórias antigas. Obrigada pelo que partilhou connosco. Muitos parabéns. Felicidades! 🍀🌹🎂
    -
    O peso das palavras

    Beijos, e um excelente fim de semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ela nos livros descreve outras situações de morrer a rir e uma delas é como conheceu o meu pai:))) era fresca, era:)
      Eu não sou muito fã de histórias antigas sobretudo as negativas e devias estar perto dela porque adora contar:)))
      Há muita coisa do meu passado que não me recordo e só lhe peço para não avivar a memória negativa porque quando me dá os parabéns recorda igualmente coisas do meu casamento com o pai das minhas filhas. Felizmente nunca mais o fez.
      Beijocas

      Eliminar
  8. amigam se não existisses, tinhas de ser inventada:)
    Beijocas

    ResponderEliminar