domingo, 7 de fevereiro de 2010

Auto-Biografia que podia ser de muitas e muitos...
















"(...)Na Infância as escolas ainda não tinham fechado.
Ensinavam-nos coisas inúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticas como sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis como verbos e tabuadas.
Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e a surpreendente mania de acreditar que isso era bom.
Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.(...)"

(...)Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.
Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de onde saíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, sem vontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito que não de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão com palha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chave na porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca, vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nem uma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meu amor, que felicidade!
(A professora era uma solteirona, mais sonhadora do que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas as nódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobre que ninguém tinha na vida real).

Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para a Faculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me, ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido). Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é que resolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos. Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente, isto talvez.
Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim como todos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porque sim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se sempre foi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho às gerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos se contariam nove mulheres).
Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revolução que nós fizemos nos últimos anos.
Não meu amor: a revolução que NÓS fizemos nos últimos 50 anos.
Mas não interessa quem fez o quê. É preciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo, quando ainda não era suposto.
Quando descobri que ser livre era acreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.

Depois foram as circunstâncias da vida.(...)

(parte da auto-biografia escrita há dois anos por Rosa Lobato Faria e publicada no Jornal de Letras)

13 comentários:

  1. De facto era uma Senhora que sabia o que queria e uma excelente escritora!
    Beijocas

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  2. Uma mulher lindíssima, por fora e por dentro.

    Beijo amigo para ti, Migota**

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  3. Lindas palavras escritas por uma linda mulher. pena que nos tivesse deixado tão precocemente. Ainda tinha muito para escrever. kisses

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  4. Há pessoas que nunca morrem apenas se ausentam...
    Bjs

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  5. Não me parece que me sobre espaço para acrescentar algo.

    Está tudo dito e na primeira pessoa.

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  6. Wind
    Concordo porque sempre a achei "uma mulher com a cabeça bem arrumada e de bem com a vida". Só não gostava do timbre da sua voz.

    Cris
    Era de facto Migota linda:)

    Avogi
    Esta auto-biografia merece ser lida de fio a pavio, mas ficaria um post bem longo e é o seu retrato fiel:)

    Beijocas e obrigado

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  7. F. Nando
    Escreveste uma frase tão bela e cheia de tudo...parabéns!

    Kruzes Kanhoto
    Uma Lady como a minha mãe a chamava:) pois era sua fã

    Observador
    e disseste tudo:)

    Beijocas e obrigado

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  8. Querida amiga.
    Belo texto. Eu creio que tens muita razão. Embora eu seja um pouco mais usado na idade,sempre entendi que os direitos e igualdades, eram para todo o ser humano, quer fosse macho , quer fosse fêmea.Acho que a mulher é suprema e, que o sexo chamado "forte" devia ser dado ás mulheres. Sou 100% masculino mas, não deixo de verificar que a mulher é sempre descriminada em relação ao homem.

    Mudando de assunto.Eu não posso colocar na barra lateral os blogs. que sigo. Era uma cegada, visto atender todos pela mesma bitola. Aqueles que lá estão foram os iniciais.Eu aproveito a oportunidade de visitar quem me visita.Além de cortesia, aproveito para fazer o meu comentário. Então a menina também queria umas florzinhas? Pois tela-ás, assim que chegar a altura. Sei que és paciente mas, não estás esquecida. Não sei se já reparaste que no meu espaço não se vê resposta aos comentários que me fazem. É uma maneira diferente de ser. Recebe um BJ. e desejos duma boa semana. Volta sempre.João

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  9. Fatyly

    Desconhecia esta autobiografia embora admire quem a escreveu e, sobretudo, o pensamento desassombrado que está implícito.
    É uma autobiografia comum às mulheres da nossa geração.
    Bem hajas por este bocadinho.

    Abraço

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  10. Espaço do João
    Compreendo e aceito na perfeição todas as diferenças que existem nos blogues e como o li desde o primeiro reparei que não respondias, o que em nada me incomoda e fiquei a saber agora com a tua explicação, aliás já dada anteriormente. Eu paciente? sim sou um bocado porque a vida ensinou-me a ser assim mas...como adoro flores nos quintais e vasos, mas não aprecio muito em ramos das floristas - apertadinhas até dizer chega - e já te disse lá qual a minha flor preferida:)

    É de facto uma texto magnífico feito por Rosa.

    Silêncio Culpado
    A minha mãe é fã dela e tinha o recorte, trouxe e só transcrevi algumas partes, porque achei fantástico.
    Sim, um pouco da nossa geração mas mais na da minha mãe que tem 80 anos e Rosa morreu com 77.

    Beijocas e obrigado

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  11. Pena que tenha ido tão cedo.
    Kao.

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