quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

21 de Junho de António Lobo Antunes














Almoço com a minha filha mais velha, pelos seus anos, num dos restaurantezinhos próximos do sítio onde escrevo. De vez em quando o telemóvel dela toca e parabéns, parabéns, aqueles que não consigo dar-lhe porque no dia do nascimento estava a dez mil quilómetros de distância. Não perdoo quase nada à Ditadura e o que menos lhe perdoo foi não ter assistido à gravidez da mãe e não estar presente quando chegou. Soube da sua vinda ao chamarem-me à barraca da rádio, por uma mensagem de Luanda, no dia seguinte, e apenas uma ou duas semanas depois chegaram fotografias pouco nítidas, enovoadas pelas minhas lágrimas de emoção e raiva. Uma filha fantasma em que não podia tocar, não podia ter ao colo, não podia beijar. Lembro-me de ter ido para junto do arame farpado, sozinho, num sofrimento imenso, e diante de mim, o rio, a mata, a infinita paisagem da minha dor. Conheci-a com quatro meses, deitada no berço a dormir, inclinei-me para ela e continuo, ainda hoje, a sentir o seu cheiro, a ver as suas mãos, o seu corpo, o seu cabelo loiro, os pezinhos que me cabiam inteiros na boca. Conheci-a com quatro meses, exausto da guerra, e dali a pouco fui-me embora outra vez. Cada 21 de Junho, ao olhá-la, vem-me à cabeça, como num vómito instântaneo, o que acabo de escrever. Fico muito quieto à frente dela no restaurante, tenha a idade que tiver, com os seus pés na minha boca e o seu cheiro a embuchar-me. Quis tanto que viesse: pensava - Vou morrer aqui - pensava - Se tiver um filho ainda que morra não morro - e desde então é a certeza da minha imortalidade e da minha permanência. Mesmo hoje, passadas mil luas, dou por mim não com ela, no Chiúme (o sítio miserável onde então apodrecia) a pensar
- Tenho uma filha, tenho uma filha e não tinha fosse o que fosse a não ser as letras do rádio e fotografias a preto e branco num quarto de maternidade, que não parava de olhar na esperança que o bebé começasse a mexer-se, a sorrir, a existir de facto, a acordar ao meu colo. Toda a guerra é horrível: os mortos, os feridos, o isolamento, a estupidez cruel, as nossas existências precárias e indignadas. Mas, maior que isso, o nascimento da minha filha foi o que mais me custou pela violência dos sentimentos contraditórios que acendeu em mim, pela dúvida – Será verdade, não será verdade? E pela minha furiosa, quase assassina indignação. A minha mãe nasceu quando o pai dela na guerra também, em França, de onde voltou (tenho o seu diário) gaseado e desfeito. Porém uma coisa era saber isto e outra coisa vivê-lo. Se Deus me fizesse o favor de voltar com os ponteiros para trás, agradecia: nada se pode comparar, julgo eu, a estar presente na altura em que uma criança nossa (em que uma criança minha) rompe no mundo. Por isso o dia 21 de Junho (21 de Junho, São Luis Gonzaga, Confessor) é uma data estranha que nunca se pacifica cá dentro. Volto a África (não é a sensação de voltar a África, é de não ter saído de lá) estou em África e um soldado vem chamar-me à barraca da rádio. O cripto entrega-me um papel – Rapariga – e eu de papel em riste, aparvalhado, incrédulo, com o coração num pingo. Como esta expressão é verdadeira: o coração num pingo. Não é uma imagem nem uma metáfora: o coração num pingo. De forma que na semana passada, no restaurantezinho perto do sítio onde escrevo, o coração num pingo. Não posso meter os seus pés na minha boca (cresceram imenso) e a minha dificuldade em exprimir ternura impede-me de a abraçar como desejaria. Para ali fico, aparvalhado: parece uma mulher e mentira: é o bebé que me roubaram, é a alegria que recusaram dar-me. É o meu bebé e o meu bebé come de faca e garfo, atende o telemóvel, cresceu inacreditavelmente depressa para a ter no colo. Comemos cerejas do mesmo prato, falamos disto e daquilo e nenhum de nós fala coisa que se veja. O facto de comermos cerejas do mesmo prato comove-me. De vez em quando os nossos dedos roçam-se, apetece-me apertar-lhos e não os aperto: estou de papel em riste a ler – Rapariga - a ler - Rapariga – diante do silêncio dos soldados, do silêncio da mata, do silêncio de Angola. Sou um pingo farpado, uma gotinha que vibra. Sou um alfereszito de vinte e tal anos a tremer contra o arame farpado. Um camarada meu aproximou-se: o Eleutério. Gostava, gosto do Eleutério. Regressava sempre da mata num molho de brócolos, com o pelotão atrás. O Eleutério chegou ao meu lado e ficou ao meu lado. Nenhum de nós disse nada. E, apesar disso, que conversa comprida, cheia de fúria e alma em tiras, naquele silêncio. Agradeço-te, Eleutério, o que trocámos sem palavras. O capitão para mim: - Parabéns, parabéns - e compreendi nesse momento que a resposta possível a – Parabéns, parabéns
era a cabeça voltada para o outro lado e a exclamação
- Caralho
tão baixinho que o mundo inteiro ouviu!

CRÓNICA
In Visão nº. 748 de 5 de Julho de 2007

6 comentários:

  1. Tinha lido e, sinceramente, pensei noutro personagem qualquer da nossa literatura.
    Feitios...

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  2. Querida Fatyly

    As crónicas do Lobo Antunes são sempre plenas de sentires...

    Beijinhos.

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  3. Gosto das crónicas de A.Lobo Antunes.
    Um abraço.
    Kao.

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  4. Observador
    Fizeste-me sorrir porque sei que não aprecias Lobo Antunes (estarei enganada?) mas esta crónica toca-me muito por vi tantos jovens junto ao "arame farpado".

    Wind
    Deste gostei e gosto apenas das suas crónicas. Li um livro apenas que não me recordo o título e achei-o super aborrecido.

    Vicktor
    São de facto e esta em perticular diz-me muito, talvez por ter vivido o sentir de milhares jovens soldados - carne para canhão!

    Kao
    Como eu:)

    Beijocas a todos e obrigado pela vossa opinião

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  5. Só mesmo quem esteve no arame farpado, do outro lado ficava para traz o Bié.
    Abraço

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