Desde que a Guerra na Ucrânia começou, José Milhazes tem sido uma presença constante nos ecrãs de televisão. O português que viveu 38 anos na Rússia, onde estudou e se casou, conhece como ninguém aquele país e o modo próprio de ser russo. Também conhece a maneira especial como se lidera, tão geneticamente comprometida com autoritarismos czaristas. José Milhazes considera que esta guerra porá fim à era de Putin e aponta as quatro alternativas que deitarão ao chão o homem que a Europa e o Mundo mais temem neste momento.
Catarina G. Barosa | Fotos: DR
Tendo vivido tantos anos na Rússia, tendo estudado na Rússia, tendo feito a maior parte da sua vida na Rússia, conseguiu identificar algum modo próprio de ser líder naquele país?
Ser líder naquele país obedece ao princípio ou à fórmula “quero, posso e mando” e, se possível, com o menor controlo que possa existir, ou seja, a liderança é muito pessoal. A liderança na Rússia faz muito lembrar o feudalismo; temos o suserano e temos os súbditos. Então, o suserano concede aos súbditos direitos, consoante a sua fidelidade, e isto foi e continua a ser uma constante da história da Rússia.
Mas há exceções?
Claro, há pequenas exceções. Há o caso de Mirkhail Gorbatchev, que tentou destruir este sistema, embora também sofresse um pouco de tentar centralizar nele próprio o poder. Por exemplo, um dos erros que ele cometeu foi, em vez de fazer com que o Parlamento o elegesse Presidente da União Soviética, deveria ter feito isso em eleições gerais, ou seja, legitimar-se através das eleições. Ele receou que não havia condições para que a maioria das pessoas o apoiasse. Agora, todos os outros dirigentes foram autoritários, mesmo olhando para Boris Yeltsin, foi também um dirigente tipicamente autoritário: é ele que manda, que dá ordens, que demite, que nomeia, que faz o que quer. Embora no caso dele com uma certa cobertura democrática, mas, nós vemos por exemplo que, quando entra em confronto com o parlamento russo em 1993, em setembro, acaba por bombardear o parlamento, ou seja, isto é um Presidente que foi democraticamente eleito e que se considerava um grande democrata.
Parece que há uma genética autoritária?
Exatamente, e que eu penso ter origem na política bizantina. É uma política muito concentrada na corte, à volta do tal suserano, do czar, onde não existe sociedade civil.
Apesar de o povo russo ser muito fiel ao ser líder, porque há essa tradição da fidelidade, como identificou e muito bem, é um facto que também há muitos momentos de insurreição na história da Rússia, também se mataram czares, por exemplo.
Isso é um dos mitos muito divulgados da história da Rússia, mas, se formos ver ponto por ponto, percebemos que não é assim. Por exemplo, Pedro III, marido de Catarina II, foi assassinado num golpe de estado dentro da corte. Paulo I, filho de Catarina II, foi assassinado também durante um golpe palaciano, ou seja, aqui não há massas populares, nem revoltas.
Depois temos outro fenómeno que é muito próprio já do século XIX, que é o terrorismo político na Rússia: Alexandre II, talvez um dos mais competentes czares na história da Rússia, o homem que libertou os camponeses da servidão da gleba, acabou por morrer à 12.a tentativa de assassinato por terroristas populistas; Alexandre III, que lhe sucedeu, teve o mesmo destino; Nicolau II, o último, foi derrubado por um levantamento popular provocado, entre outras coisas, pela campanha desastrosa na Primeira Guerra Mundial.