quarta-feira, 5 de julho de 2023

21 de Junho de António Lobo Antunes

 









Almoço com a minha filha mais velha, pelos seus anos, num dos restaurantezinhos próximos do sítio onde escrevo. De vez em quando o telemóvel dela toca e parabéns, parabéns, aqueles que não consigo dar-lhe porque no dia do nascimento estava a dez mil quilómetros de distância. Não perdoo quase nada à Ditadura e o que menos lhe perdoo foi não ter assistido à gravidez da mãe e não estar presente quando chegou. Soube da sua vinda ao chamarem-me à barraca da rádio, por uma mensagem de Luanda, no dia seguinte, e apenas uma ou duas semanas depois chegaram fotografias pouco nítidas, enovoadas pelas minhas lágrimas de emoção e raiva. Uma filha fantasma em que não podia tocar, não podia ter ao colo, não podia beijar. Lembro-me de ter ido para junto do arame farpado, sozinho, num sofrimento imenso, e diante de mim, o rio, a mata, a infinita paisagem da minha dor. Conheci-a com quatro meses, deitada no berço a dormir, inclinei-me para ela e continuo, ainda hoje, a sentir o seu cheiro, a ver as suas mãos, o seu corpo, o seu cabelo loiro, os pezinhos que me cabiam inteiros na boca. Conheci-a com quatro meses, exausto da guerra, e dali a pouco fui-me embora outra vez. Cada 21 de Junho, ao olhá-la, vem-me à cabeça, como num vómito instântaneo, o que acabo de escrever. Fico muito quieto à frente dela no restaurante, tenha a idade que tiver, com os seus pés na minha boca e o seu cheiro a embuchar-me. Quis tanto que viesse: pensava - Vou morrer aqui - pensava - Se tiver um filho ainda que morra não morro - e desde então é a certeza da minha imortalidade e da minha permanência. Mesmo hoje, passadas mil luas, dou por mim não com ela, no Chiúme (o sítio miserável onde então apodrecia) a pensar

- Tenho uma filha, tenho uma filha e não tinha fosse o que fosse a não ser as letras do rádio e fotografias a preto e branco num quarto de maternidade, que não parava de olhar na esperança que o bebé começasse a mexer-se, a sorrir, a existir de facto, a acordar ao meu colo. Toda a guerra é horrível: os mortos, os feridos, o isolamento, a estupidez cruel, as nossas existências precárias e indignadas. Mas, maior que isso, o nascimento da minha filha foi o que mais me custou pela violência dos sentimentos contraditórios que acendeu em mim, pela dúvida – Será verdade, não será verdade? E pela minha furiosa, quase assassina indignação. A minha mãe nasceu quando o pai dela na guerra também, em França, de onde voltou (tenho o seu diário) gaseado e desfeito. Porém uma coisa era saber isto e outra coisa vivê-lo. Se Deus me fizesse o favor de voltar com os ponteiros para trás, agradecia: nada se pode comparar, julgo eu, a estar presente na altura em que uma criança nossa (em que uma criança minha) rompe no mundo. Por isso o dia 21 de Junho (21 de Junho, São Luis Gonzaga, Confessor) é uma data estranha que nunca se pacifica cá dentro. Volto a África (não é a sensação de voltar a África, é de não ter saído de lá) estou em África e um soldado vem chamar-me à barraca da rádio. O cripto entrega-me um papel – Rapariga – e eu de papel em riste, aparvalhado, incrédulo, com o coração num pingo. Como esta expressão é verdadeira: o coração num pingo. Não é uma imagem nem uma metáfora: o coração num pingo. De forma que na semana passada, no restaurantezinho perto do sítio onde escrevo, o coração num pingo. Não posso meter os seus pés na minha boca (cresceram imenso) e a minha dificuldade em exprimir ternura impede-me de a abraçar como desejaria. Para ali fico, aparvalhado: parece uma mulher e mentira: é o bebé que me roubaram, é a alegria que recusaram dar-me. É o meu bebé e o meu bebé come de faca e garfo, atende o telemóvel, cresceu inacreditavelmente depressa para a ter no colo. Comemos cerejas do mesmo prato, falamos disto e daquilo e nenhum de nós fala coisa que se veja. O facto de comermos cerejas do mesmo prato comove-me. De vez em quando os nossos dedos roçam-se, apetece-me apertar-lhos e não os aperto: estou de papel em riste a ler – Rapariga - a ler - Rapariga – diante do silêncio dos soldados, do silêncio da mata, do silêncio de Angola. Sou um pingo farpado, uma gotinha que vibra. Sou um alfereszito de vinte e tal anos a tremer contra o arame farpado. Um camarada meu aproximou-se: o Eleutério. Gostava, gosto do Eleutério. Regressava sempre da mata num molho de brócolos, com o pelotão atrás. O Eleutério chegou ao meu lado e ficou ao meu lado. Nenhum de nós disse nada. E, apesar disso, que conversa comprida, cheia de fúria e alma em tiras, naquele silêncio. Agradeço-te, Eleutério, o que trocámos sem palavras. O capitão para mim: - Parabéns, parabéns - e compreendi nesse momento que a resposta possível a – Parabéns, parabéns
era a cabeça voltada para o outro lado e a exclamação
- Caralho
tão baixinho que o mundo inteiro ouviu!

CRÓNICA de António Lobo Antunes
In Visão nº. 748 de 5 de Julho de 2007


12 comentários:

  1. A gente lê e arrepia-se.
    Especialmente quem teve o privilégio de estar lá no parto das duas filhas.
    Realmente é imperdoável.
    Beijos

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    1. Felizmente o regime mudou Pedro, porque os pais não podiam assistir ao parto. Eu fiz muito voluntariado nos hospitais militares e Lobo Antunes quando veio para Luanda digo-te que era muito afável e revoltado como todos os que serviram de "carne para canhão"! Os nascidos lá como eu gente do povo eramos contra a ida de tantos jovens! Enfim já é passado!
      Beijos e uma boa noite

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  2. Estou comovidíssima!
    É por estas - e por outras - leituras, cheias de sentidos desabafos que, por mais que digam cobras e lagartos do ALA, eu gosto dele, dos seus poemas e dos seus livros!!

    Beijinhos e o meu Obrigada por esta partilha.

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    1. Também gosto muito dele e da sua escrita. Também gostava muito do irmão médico e que trabalhava no Hospital Stª Maria que conheci cá porque as netas andaram com as minhas numa escolinha.
      Beijos e uma boa noite

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  3. Traumas da gfuerra que foram vividas por muita gente. Muita mulher ficou grávida quando os namorados, maridos, iam para a guerra. Muitos não voltaram. Outros conheceram os filhos já com mais de um ano.
    MALDITA GUERRA.
    .
    Saudações cordiais e poéticas
    .
    Pensamentos e devaneios poéticos
    .

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    1. Subscrevo totalmente e acrescento apenas que jovens que foram não tinham nenhuma noção das matas de Angola. Muitos ainda hoje sofrem de stress traumático de guerra.
      Beijos e uma boa noite

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  4. Houveram tantos casos análogos. Emociona ler.
    *
    Quarta feira com Saúde, Paz, e Amor.
    */*
    Ilusões e Poesia
    */*

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  5. Também sou apreciador das crónicas de Lobo Antunes.
    Um abraço.

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    1. Eu leio quase todos e por vezes transcrevo. Este sempre andou comigo numa folha de papel.
      Beijos e uma boa noite

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