sexta-feira, 9 de setembro de 2011

"Já não amo a América"

Isto comoveu-me muito, mas muito, porque também me sinto "uma carta fora do baralho"!



O escritor Pedro Paixão partiu para Nova Iorque pouco tempo depois dos ataques terroristas de 2001. Num texto inédito, explica como digeriu aquela nova realidade. "Se a Europa morreu nos fornos de Auschwitz, a América sofreu um ataque cardíaco no 11 de Setembro", afirma.


Eu amei a América

Antes de ir pela primeira vez à América eu já amava a América. Na verdade, eu já tinha estado na América antes de lá ir pela primeira vez. Para dizer a verdade inteira: eu nasci na América, lá ir foi apenas regressar. Soube disso mal aterrei no aeroporto de Nova Iorque e depois, durante muitos anos, falando, vendo, lendo, ouvindo e escrevendo, fui sabendo melhor porque nasci na América, e a amei por isso.

O amor é um sentimento confuso: não tem fronteiras fixas, razões que lhe bastem, é inútil tentar controlá-lo: é ele que nos apanha, nos leva consigo e depois nos deixa, para que, sempre outro e o mesmo, tome de novo conta de nós. A América foi o lugar que permitiu ao meu avô materno vencer a fome e a miséria, o primeiro, da minha minúscula família, a ler livros e jornais, a apreciar música, a cultivar o ócio que permite pensar. Nunca deixo de lho agradecer e pedir ao meu filho que nunca esqueça de onde viemos. A minha família nasceu na América – curiosamente numa pequena cidade a uns dez quilómetros do lugar onde foi construída por judeus portugueses, livrados do Santo Ofício da Inquisição, a primeira sinagoga da América do Norte, com o peculiar nome de Touro.

Voltei a nascer na América quando quis ser astronauta e vivi empolgado, com oito ou nove anos, a fantástica aventura da conquista espacial. Depois nunca mais deixei a América. Eu acreditei que a justiça, sempre de novo derrotada, vivia na América, que John Ford era mais do que realizador de cinema mas quem fizera do cinema a arte do século XX, que nada seria mais fascinante do que passar uma tarde com o Andy Wahrol a falar do que a América quer dizer. E, como se não bastasse, havia o Pollock e o Rothko, e havia o Miles e o Chet, e havia Duchamp e Frank Lloyd Wright, e uma maravilhosa criança chamada Marilyn Monroe. E ainda teve tempo de inventar tudo o que faltava inventar: a luz eléctrica, a pílula, a internet. Claro que ninguém pode ignorar a violência, a discriminação, as bombas de napalm. A América não é um país com problemas. A América é o país que mais problemas tem, sempre teve. Tudo está na vontade de os resolver. E a América, é, sempre foi, antes de mais, vontade.

Eu já não amo a América. Estou cansado, velho e desiludido. Se a Europa morreu nos fornos de Auschwitz, a América sofreu um ataque cardíaco no 11 de Setembro. Ter ganho a Guerra Fria, oferecendo-nos cinquenta anos de paz e riqueza, deixou-a falida económica e, sobretudo, moralmente. Já não tem alma para gritar: somos os melhores, porque o merecemos. A liberdade, não de escolher entre isto ou aquilo, mas de poder fazer o que deve ser feito, custe o que custar e sem aguardar recompensa, perdeu a sua última possibilidade. Num mundo estilhaçado onde já ninguém sabe quem é, berrando o contrário, a vontade da América deixou de querer ser simplesmente o que é, vontade. Deixei de amar a América. Não vou amar mais.

Pedro Paixão

(in Sapo.pt)

4 comentários:

  1. Eu então nunca gostei da América!:)
    Beijocas

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  2. Um grande texto... mas eu nunca gostei da América.

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  3. Wind
    eu sempre gostei da América, do seu povo e da união para se erguerem...embora não tivesse gostado de muitos políticos.
    Mas ao ler comovi-me tudo porque...por outros motivos mas igulmente catastróficos perdi a minha Angola e e hoje em Portugal...sinto-me uma carta fora do baralho.
    Percebes a ideia?

    Beijocas e obrigado

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  4. Mfc
    é de facto um grande texto e hoje pergunto quantos portugueses deixaram de amar Portugal?
    Gosto do povo americano mas de algumas politicas não, mas quando qualquer país sente "o cú a arder" bem que apelam à América.


    beijocas e obrigado

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